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A (Re)Invenção do Negro – Movimentando a História

Autor(a)

Flavia Virginia

Categoria

Revista

Data

28 de janeiro de 2007

Língua

Português (PT)

Meio de publicação

Revista Afirmativa Plural

בס״ד

A (Re)Invenção do Negro – Movimentando a História


O início do século XXI baliza, para a população negra do Brasil, alguns avanços em direção à liberdade. A Faculdade Zumbi dos Palmares, iniciando suas atividades em 2004, é um marco da matriz educacional, assim como as leis sancionadas neste Julho de 2010 em prol da ampliação do pensamento inclusivo o é na matriz sócio-política.


Os movimentos que vêm a pensar essa condição surgem na América Latina desde o começo do século passado, com força especial na Colômbia, Uruguai Venezuela, além do Brasil. Nestes países, um pouco mais, um pouco menos, foram ganhando corpo, mudando de nome, aumentando o alcance, adicionando demandas, alargando a autoconsciência, sempre em busca de reorganizar a vida, a contribuição e o sentido desta população na sociedade em que se encontra.


Os movimentos que vêm a pensar essa condição surgem na América Latina desde o começo do século passado, com força especial na Colômbia, Uruguai Venezuela, além do Brasil. Nestes países, um pouco mais, um pouco menos, foram ganhando corpo, mudando de nome, aumentando o alcance, adicionando demandas, alargando a autoconsciência, sempre em busca de reorganizar a vida, a contribuição e o sentido desta população na sociedade em que se encontra.


A América Latina – “evento” criador da modernidade – e essa parte de sua gente, os negros, não terá ainda despertado totalmente para este fato de dupla significação: 1) a construção de toda uma era, um corpo conceitual, um modo de ver o mundo, 2) edificado sobre a noção de uma raça que seria, por sua simples constituição, digna de inferiorização.


Em seguida, vemos que, enquanto na África há africanos, é aqui nestas terras nossas que se instaura o advento do “negro”, a quem configuram precisamente as seguintes condições: exílio, escravatura, racificação, destituição da memória, miscigenação, nacionalização. Neste processo, não há volta atrás; isto é, jamais deixaremos de ser brasileiros, colombianos, venezuelanos; e o caminho para frente não é, tampouco, a emigração de volta para a África, pois tamanhas são as diferenças que nos constituem. Seu processo é bem outro – ainda que igualmente sangrento. O africano perdeu família, mas nem por isso se miscigenou; teve seu povo dividido em linhas arbitrárias na convenção de Berlin de 1885, embora tenha mantido, ainda assim, a sua língua; foi inferiorizado e destituído em sua própria terra, e trabalha até hoje para restituir os danos desses feitos.


A conseqüência dessas diferenças entre mãe e filha é a linha com que nós, a filha, costuramos nossa história: Latinoamérica. Assim sendo, é aqui mesmo, nestas nossas terras que deve/pode instituir-se esse ser, o negro, já de posse do seu relato, como quem busca para si um novo devir, próprio, único, sujeito a erros e acertos, os quais serão por ele mesmo classificados, revistos, consertados.


É bem verdade que ainda falta um bocado para uma concretização ótima: população negra produzindo em um ambiente equânime de oportunidades, direitos e distribuição de bens tangíveis e intangíveis. No entanto, aprendemos todos a duras penas que a equanimidade não é um ideal simples, especialmente se não está no nascedouro mesmo da nação.


Podemos observar que a negritude é, acima de tudo, um processo temático, que inclui uma noção nova de História, uma Geografia, uma Pedagogia, uma Cosmovisão que não termina no passado, mas, antes, se perpetua ao infinito, e que tem uma localização específica – não como um grupo excludente de países, mas como um laço includente de excluídos –, que é esta Latinoamérica que nos une.


E daí teremos meios, quiçá, de perguntar: afinal, para que sermos negros? Qual a importância de manter o uso dessa categoria política, se não for para oferecer aos que dela padecem condições de alterar o seu próprio destino histórico? Por que identificar-se com a dor e nela eternizar-se, em vez de acolhê-la como algo que está no nosso passado e que não permitiremos que configure nosso destino histórico? Ou, melhor ainda, a que nível de liberdade nos damos o direito? Apenas de não sermos escravos, talvez, para nos mantermos “doentinhos”, isto é, sempre capazes de agüentar as outras atrocidades oriundas de uma “desescravização” a fórceps lento? Afinal, quantos de nós somos ainda analfabetos, não só nas letras, mas no acesso profundo à cultura do próprio país a que nos habituamos a chamar de nosso? Em quantos índices de desenvolvimento humano figuramos como o pólo pior que permite classificar pessoas em pobres e ricas? Ou, ainda mais significativo, quantos políticos negros preparamos nos nossos países com negros?


É na compreensão dessa dimensão que o simples fato, ainda que “atrasado” (diante do calendário ideal), das sanções de Julho torna-se pedra angular na constituição de um Brasil mais pleno de pessoas. Mas, cuidado, pedra angular significa apenas pedra. O que será feito dela é item que exige atenção perene. Terá servido para unificar a movimentação em torno da nossa temática? Seremos capazes de levá-la adiante em nossas conversas com os jovens, esclarecendo pontos para que eles conheçam seus novos direitos? Em outras palavras, estaremos nos abstendo do afazer político em troca do falar (mal) da política? Estaremos mesmo em condições de abandonar o navio?


O que quer que venhamos a fazer daqui para frente tem que significar união, troca, entendimento, abertura, política. Nada existe que não seja dentro dela. A raça e o advento americano foi uma ação política. A Faculdade Zumbi dos Palmares é um ato de coragem política. As sanções de Julho o são também. Este texto e esta revista. O hoje, como o ontem, é político. Fundamentalmente, pensar que alguém escolherá para si chamar-se negro em vez de qualquer outra coisa é uma atitude de cunho político e seus resultados, como todos os outros, têm que ser traduzidos em políticas públicas para o bem-estar da população de todas as denominações. Fora disso, é a miséria, sempre.


Flavia Virginia

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