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Fumar ou Não Fumar, Eis a Questão

Autor(a)

Flavia Virginia

Categoria

Jornal

Data

28 de janeiro de 2007

Língua

Português (PT)

Meio de publicação

Jornal de Angola

בס״ד

Fumar ou Não Fumar, Eis a Questão


Não sou lá muito idosa, mas, conhecendo o Brasil e Angola como conheço, creio poder dizer sem medo de errar que já presenciei acontecimentos bizarros. Há, certamente, quem tenha visto piores, mas, que eu já vi coisas estapafúrdias, ah, isso, já! 


O mais interessante, no entanto, é a capacidade auto-estapafurdiante das próprias coisas. Ou seja, elas tentam superar-se diante de minha visão! Não bastassem os últimos eventos brasileiros, por mim fielmente retratados aqui nesta outrora agradável porém ultimamente um tanto excêntrica coluna, tais como o do homem que desmorreu, o do morador de rua que morava no meio da Avenida Brasil e, finalmente, a saga de Lili, a rafeira sortuda, não bastasse tudo isso, em outra avenida igualmente famosa, nesta semana mesmo testemunhei uma cena inigualável. 


Uma rapariga, com cabelos devidamente oxigenados como manda a moda aqui no país (é fundamental não possuir cabelos em cor natural, nada pior, Deus nos livre), estava à paragem do autocarro quando ia a sacar de sua carteira de cigarros um dito-cujo, ao que eu, não-fumadora xiita, pensava comigo: lá vai aquela perfumar o ar da cidade. Mas eis que não era nada disso, ela retirava da carteira não um, nem dois, porém bem uns três ou quatro cigarros (de onde eu estava não divisei com exactidão). Ofereceu-os a um morador de rua – que, no entanto, diferentemente daquele supra-citado, parecia ter mesmo uma auto-estima de mendigo, deixemos dessas frescuras; mendigo, pronto. Enfim, a rapariga, esforçada em manter-se tanto na moda capilar e vestimental quanto na moda do politicamente correcto, talvez na falta de dinheiro ou de vontade de dinheiro, resolveu oferecer-lhe algo de que ele certamente gostaria, uns três ou quatro cigarrinhos que inclusive, dizem, tiram a fome, ou pelo menos impedem a cabeça de dar atenção à barriga, não sei bem. 


Se me permitem um adendo, eu diria que ela acreditou assim resolver o conflito entre os seus interiores anjinho e diabinho, este último dizendo: “ah, manda o mendigo ir pastar”, e o primeiro “nada disso, minha filha, temos que ter compaixão para com todos os seres”, e o diabinho “e por causa da compaixão tu vais dar-lhe o teu dinheiro suado?”, e o anjinho “não podemos apegar-nos às coisas materiais e terrenas, o homem tem necessidade” e foi aí, nessa palavra mágica, que ela pensou “ah, necessidade não precisa ser dinheiro, todos os mendigos fumam, vou dar-lhe cigarros e ele vai agradecer-me eternamente”. 


Percebe-se logo que a rapariga não sabe fazer silogismos e, portanto, não infere bem uma coisa de outra, o que pode ter sido a causa do resultado de sua acção. Pois bem, contente que estava com a solução para seus problemas maniqueístas, sacou dos cigarros e ofereceu-os, quase aliviada, já, ao mendigo. 


Ao que ele recusou. 


Repito: ao que ele recusou. 


Re-cu-sou. Denegou os cigarros. Refutou-os. Desprezou-os. Repeliu-os. A lista de sinónimos é enorme e sempre inacreditável. Curiosamente, ele tinha uma lata de refrigerante na mão e continuou ali, a bebê-lo, também na paragem de autocarro, embora de frente para uma lata de lixo; manteve-se ali, ao lado da rapariga, que, enjeitada também ela, pôs os cigarrinhos, agora murchinhos, murchinhos, coitados, de volta dentro da mui sem-graça carteira, uma cena de infindáveis embaraços, rematados naquele gesto lateralizante da cabeça como quem diz “ah, não quer, tudo bem”, só que, por dentro, tudo bem, nada, uma vergonha de dar dó; os processos dualistas a recomeçarem com o anjinho a esboçar aquele sorriso amarelo do Tony Blair, o diabinho fulo da vida no melhor estilo “eu disse-te”, e a rapariga a querer olhar para trás para ver se mais alguém a viu cair em desgraça por causa de um mendigo metido a engraçadinho; no entanto não disse nada, imediatamente pegou o celular e fingiu que estava numa ligação, manteve-se ali, altiva, eu tenho cigarros E celular, não sou uma qualquer, por dentro, pés de barro, mas, por fora, Roma, ou, para ser mais contemporânea, por dentro, Iraque, mas, por fora, Bush. 


Acrescento ainda que a cena toda desenrolou-se diante de mim, talvez de algum outro motorista semi-desocupado graças ao tráfego impossível dessa cidade, quase tão grave quanto o de Luanda, e de alguns milhares de almas, uma vez que a dita rua fica defronte a um imenso cemitério. 


A título didáctico, oferto aos estimados leitores uma série de “morais da história” para que cada um, no recôndito de sua consciência, escolha a que melhor lhe aprouver. A História não tem moral. Não se fazem mais mendigos como antigamente. O mendigo de hoje pode ser a loira oxigenada de amanhã. Mendigo é uma questão de espírito. Fumar faz mal aos brios.


Flavia Virginia

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