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Morre Pinochet, Agoniza Fidel: o Outono dos Patriarcas

Autor(a)

Flavia Virginia

Categoria

Jornal

Data

28 de janeiro de 2007

Língua

Português (PT)

Meio de publicação

Jornal de Angola

בס״ד

Morre Pinochet, Agoniza Fidel: o Outono dos Patriarcas


...mas não por ter cabelos brancos que cabelos brancos não dizem sobre sabedoria generosidade humildade aquela compaixão que se espera nos olhos nada disso se diz de cabelos brancos de mãos trémulas de olhar perdido no espaço onde antes ficava o futuro e agora só mora o passado e é quase sempre para as partes mais roxas dele que se olha aquelas mesmo que não se vão consertar aquelas que não voltam aquelas em ponta de faca aquelas de ferro em brasa aquelas que não entendemos antes e nem compreendemos hoje não porque nos falte o tutano mas porque compreender agora é até injusto é até solidão é até escárnio é até escalpe, e quem é que quer dormir e acordar e dormir com essas imagens essas justo aquelas que mais dóem e que fazem lembrar quem fomos para quem fomos o que pior fomos e ainda pior ainda não admitirmos pois admitir é sê-lo duas vezes dez vezes mil vezes dizem alivia mas para quê ser aliviado daquilo que fomos talhados para ser aquilo que perseguimos sem saber muito bem mas inebriados por aquilo outro que tanto queríamos como se animal em selva africana fôramos, quem caça pensa querer a presa do elefante a pele do tigre a pluma do faisão mas quer mesmo é o sangue da fera é o suor no próprio corpo é o coração descompassado pelo medo mesmo de ser também o caçador a presa e são momentum da poesia mais profunda que o homem pode ter, é preciso mandar vir mais bichos importar mamíferos criar em cativeiro cuidar acariciar nutrir cheirar de perto e perceber suas doenças olhar nos olhos e saber a hora certa de sacrificar e se há outros por perto é necessário agir com a prudência devida seja ela um tiro de canhão para matar uma pombinha seja pendurar uma sucuri de meio palmo num galho por cima da cabeça do leão, ah, eu adoro a selva, venham até mim, meus filhos, mas não por eu ter já cabelos brancos que cabelos brancos não dizem sobre clareza de vontades trabalho dos rins força nas mãos para largar tudo isso pois largar é que não largar nunca os bichos não se atiram no despenhadeiro antes agarram-se muito bem agarradinhos no que for e eu aqui muitos anos de mata muitos anos ou eu ou eles e comigo é sempre eu, ah, eu adoro a selva, venham até mim, meus filhos, assim não morro nunca.


Se bem que é bem mais difícil cuidar da moribundice alheia que da própria a nossa vamos levando pois o tempo ajuda-nos está sempre connosco e na verdade já nascemos com o espírito moribundo mas o disfarçamos atrás da volúpia do poder mandar e desmandar fazer e desfazer querer e desdenhar tudo isso para esconder as banhas as pelancas o tremor o temor não da morte mas da vida mesma que vai valendo cada vez menos são os agentes das inteligências secretas que buscam para nós nossa morte é a comunicação social a criar-nos atentados quando estávamos quietos a ver televisão é um grupo de bêbados filosofantes a simular golpes de estado quando mal acabávamos de acabar o amor com aquela tão desejada rapariga filha do nosso maior inimigo político inimigo não enquanto político mas porque é adepto de um clube de futebol ridículo, no fim vamos todos ter um fim e o dele será parecido ao meu pois cabelos brancos não dizem sobre bom gosto bom termo boa vontade e vou mais é lambuzar-me nesta rapariguinha aqui enquanto ainda posso assim ainda vejo o pai a fazer-me vénias salamaleques compridos cumprimentos e eu por dentro só gozos conheço-te a filha pariste alimentaste criaste para satisfazer-me e fizeste-o bem fizeste-o bem, tua filha me foi das últimas coisas boas, até agradeço-te.


E mesmo que tenha que passar longos momentos na cama deitado prostrado cansado enfermo o caçador não teme as mordidas de cobra se puder roçar na trunfa do leão o lenhador quer para si o cheiro da madeira tombada e por isso não foge ao machado e eu quero para mim a multidão o livro a emoção a mentira em embate mortal com a verdade quem sou eu quem eu fui eu quero a história eu sou a história não importa mais nada eu sou Alexandre espalho amor espalho guerra espalho-me no tempo e sofro condôo-me agonizo estrebucho definho até virar só cuspe de sangue e depois cuspe sem sangue mas morrer, não morro.


Quando tudo terminar quando as guerras mundiais vierem quando tudo o que existe o homem reaprender quando puder escolher entre viver e viver ainda mais eu estarei lá meu nome será numas bocas com ódio noutras com saudade jamais nenhuma mente calará meu nome.


Eu estou para além do fim.


Flavia Virginia

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