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O Nomeador

Autor(a)

Flavia Virginia

Categoria

Jornal

Data

28 de janeiro de 2007

Língua

Português (PT)

Meio de publicação

Jornal de Angola

בס״ד

O Nomeador


Quem será que dá nome aos remédios? Certamente não é lá uma pessoa muito musical e, além disso, parece seguir um código interno da Farmacologia que diria que o nome não pode deixar transparecer as propriedades do medicamento. Sabe-se ainda que alguma parte do princípio activo, para agravamento da situação, está às vezes presente na composição do nome, mas isso não melhora nada, pois os princípios activos são praticamente impronunciáveis. Aliás, deveriam existir sem precisar ser referidos.


Estaria criada, desta forma, uma nova ordem de palavras, que não servem para ser ditas: as calavras. Existem, têm significado, mas estão confinadas ao silêncio da linguagem escrita. Um pouco segregativas, pois os analfabetos nem sequer tomariam conhecimento delas, mas, que fazer, a vida é assim, cruel. Se bem que ninguém precisa mesmo saber o que é dimetilaminofenildimetilpirazolona.


E, voltando ao início, como é que daí alguém extrai “cibalena”? Se fosse “cefalena”, pensaríamos logo em dor de cabeça e tudo entraria nos eixos, mas esta é precisamente a clareza que o tal código visa impedir e ficou sendo “cibalena”, mesmo. Claro que a “aspirina”, que não aspira nada, tem o mesmo defeito, sendo seu pai o ácido acetilsalicílico. O “foradil” não é uma pomada tópica, como a primeira parte do nome – fora – poderia indicar, e apesar de advir do formoterol, produz na saúde o efeito contrário ao formol dos mortos.

Um dos mais interessantes é o “voltaren”, pois suscita duas perguntas seguidas: a primeira é “quem voltaren?”, e a segunda é “quem deu-me um tiro no estômago?”.


Porém o nomeador de remédios é tão, digamos assim, diferente, que até um medicamento chamado “exosurf” pode deixar-nos atónitos: é só para recém-nascidos, excluindo os óbvios surfistas a título de contrariedade. Já o “evanor” poderia muito bem ser nome de pessoa, pelo menos no Brasil, se já não o for.


É claro que nós tampouco estamos a propor que os fármacos todos sigam a linha do “expectovac”, “acnase”, “digestina”, “inflanan”. Tal insinuação seria inaceitável por dois motivos: 1) todo o pessoal da farmacêutica, já habituado a seus nomes especiais, poderia sentir que a categoria foi desprestigiada ao adoptar palavras simples e reconhecíveis; 2) pedir o remédio no balcão da farmácia tornar-se-ia constrangedor com muito mais frequência do que já é, como no exemplo do “gonopac”.


Mas, como tudo na vida, há vantagens no mundo da nomeação farmacêutica. As letras “q”, “x”, “y” e “z”, em geral muito pouco usadas enquanto iniciais no português, especialmente nas agendas telefónicas mas também nos dicionários, aqui ganham relevo e protagonizam toda uma panóplia de palavras estranhas, embora benéficas. Permitam-nos destacar os queridos “quemicetina”, que estaria melhor escrito se levasse um ponto de exclamação ao final: “quemicetina!”; “xalatan”, “xantinon” e “xeloda”, os dois primeiros comummente confundidos com charlatão e champignon, o último vencedor do Prémio Enigma da Esfinge; “yomax”, o remédio dos rappers; e finalmente “zepelan”, o nome português que já vem em francês.


É certo que essas reflexões não ficariam completas sem a análise do remédio mais comentado dos últimos tempos: o “viagra”. Infelizmente, uma apreciação assim, profunda, profunda, não será possível por tratar-se da edição dominical de um jornal familiar, mas, apesar disso, procedemos ao exercício de vestir a pele do nomeador farmacêutico e criar panoramas inspiradores que resultassem em um nome aceite pela comissão julgadora. Ocorreu-nos que o dito senhor (ou senhora) pensava nos efeitos da droga: é uma via agradável. Ou então uma viagem grande. Ou, dependendo do usuário, viabilizador de granel. Ou talvez ainda: viável e garantido.


Como vêem, não é para todos a tarefa de nomear remédios. Aliás, dar nome às coisas é, de um modo geral, tão complicado que até Deus que é Deus delegou essa empreitada a Adão: “nomeia só”. Não sabemos o que Ele ficou a fazer nesse ínterim, a Bíblia não conta. Mas o facto é que Adão, como não tinha doenças, era bem mais sensato que nossos amigos acima. Ele certamente jamais decifraria o significado da palavra “viagra”. Mas nós temos ainda uma última sugestão. Sua origem verdadeira terá inspiração divina: vi a graça.


Flavia Virginia

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