בס״ד
Um Teatro de Dez Pragas
Na sequência de um édito de genocídio dos meninos hebreus, como explicado em Shemot, as parashot de Vaera e Bo mostram o famoso caso das Dez Pragas do Egito: Moshe e seu irmão Aharon vão até o Faraó pedir que permita aos hebreus saírem para o deserto a fim de fazer um sacrifício a Deus. YHWH esclarece que, entretanto, endurecerá o coração do Faraó muitas vezes, pelo que ele nega o pedido e o que se segue é uma dezena de pragas enviadas por Deus pela mão de Aharon, no começo, e depois pela de Moshe, as três primeiras atacando tanto egípcios quanto hebreus, as últimas, somente egípcios.
O contexto geral é o seguinte: Deus quer tirar o povo do Egito porque ouviu seu clamor. Escolhe Moshe, um hebreu que não apenas escapou do genocídio como foi criado pela filha do Faraó, dentro do palácio; com a anuência, portanto, daquele que havia ditado o édito de morte. Moshe, que conhece sua origem e sua família, mata um capataz egípcio, corre para o deserto, casa-se na família de um sacerdote que conhece YHWH, torna-se pastor de lindas ovelhinhas até que Deus lhe aparece numa sarça ardente e diz: “Vai lá e traz o pessoal”. Moshe, não querendo papo com egípcio nenhum, menos ainda com o Faraó (embora fosse já outro, não o seu avô), ainda tenta um “veja bem”, mas Deus resolve todos os seus pequenos probleminhas e mantém firme a missão.
Deus quer tirar o povo do Egito porque ele estava sofrendo muito. Certo. Mas… para tirar o povo do Egito, digo, para Deus tirar o povo do Egito, era preciso aquele carnaval das pragas? Não dava pra mandar uma nave, um raio encolhedor? Tinha que ficar endurecendo o coração do Faraó — não que ele fosse bonzinho, mas, peraí, bicho*, dez vezes???
Já foi bem discutido que as pragas tem relação com deuses egípcios, às vezes mais de um para cada praga. O texto bíblico não faz alusão a esses deuses, porque, embora reconhecendo a existência deles, não se importa muito com ela; não há, por exemplo, nenhuma fala dizendo “Eu, o Eterno, sou mais poderoso que Hapi”.
Eis aqui uma possível lista, apenas para que nos situemos melhor no quadro total:
1. Sangue (דם)
A água do Rio Nilo, que era a trazia vida e riqueza ao Egito, transformada em sangue é um embate direto com o deus Khnum, fonte do rio, e com Hapi, deus da cheia anual e rei dos peixes.
2. Sapos (צפרדע)
Os sapos apareciam no Egito principalmente após a cheia anual. Com esta praga, eles surgiram em todos os cantos aos magotes; uma afronta, talvez, à deusa Heqet, que tinha uma cabeça de sapo e era a deusa da fertilidade, casada com o Khnum da primeira praga.
3. Piolhos (כנים)
O deus Geb legislava sobre a terra, de onde, com a praga, saíram incontáveis piolhos ou pernilongos.
4. Insetos (ערוב)
Khepri era um deus com cabeça de besouro ligado ao nascer do sol, significando a renovação da vida.
5. Gado doente (דבר)
A deusa Hathor, também símbolo da fertilidade, tinha chifres de touro. Esta praga dizimou os animais do Egito.
6. Furúnculos (שחין)
Ísis era a deusa da saúde e Imhotep, o da cura.
7. Granizo (ברד)
Danificando toda a agricultura e o que gado que ainda havia restado; Nut era a deusa do céu e do cosmos e seu pai, Shu, comandando o vento e o ar, era o deus da paz.
8. Gafanhotos (ארבה)
O que ainda não houvesse sido destruído nos campos o foi com a presença dos gafanhotos nesta praga. Neper e Nepit, um casal, eram os deuses do grão; Set era o deus da desordem.
9. Escuridão (חשך)
Durante 3 dias houve escuridão absoluta, um ataque frontal a Ra, o deus do sol e o mais reverenciado do panteão egípcio, ao qual o Faraó era mais imediatamente ligado, visto às vezes como seu filho.
10. Morte do primogênito (מכת הבכורות)
Assim como o faraó anterior havia decretado a morte dos meninos hebreus, Deus decreta a dos primogênitos de todo o Egito, pessoas como animais, como um grande julgamento por sobre o Faraó e sua terra.
Finalmente, após a décima praga, Deus deixa de endurecer o coração do Faraó e o povo pode sair. Interessante que, desde o princípio, o projeto de Deus era libertar o povo; portanto, a fala sobre o sacrifício era apenas um subterfúgio e Deus havia, na verdade, ordenado a Moshe que contasse uma mentira ao Faraó.
Em outras palavras, não só o Faraó teve seu coração endurecido por Deus e não por si próprio, como Moshe lhe mentiu descaradamente, “vamos só ali rapidinho”, mentira que dava para se intuir, tipo, quem é que vai ali rapidinho com milhares de pessoas?
— Vou logo ali com aquele Maracanã de gente, mas já volto, preocupa não!
— Sem problema, irmão, é nóis.
Por fim, após essa derrota que parecia total, Deus endurece ainda uma vez o coração do Faraó — que até poderia ter se irritado sozinho, genuinamente: o Egito ficou no chão, o Faraó perdeu o filho, todas as riquezas e mais a força de trabalho hebreia que certamente faria falta na hora da reconstrução… Enfim, enfurecido, o Faraó parte pra cima; entretanto, Deus faz mais uns milagritos e ele, além de tudo, morre com todo o exército dentro de um mar que abre-e-fecha, só que não à sua vontade, mas à Sua.
Ou seja, o tempo fechou total para o Faraó. Pelo menos ele não ouviu a muito mais irritante ainda musiquinha que o pessoal cantou quando chegou sequinho do outro lado — canção que eu, particularmente, adoro**, mas, né, não sou egípcia.
Mas, afinal: por que Deus precisou endurecer o coração do Faraó com 10 horríveis pragas e depois disso ainda matar seu exército com uma morte tão cruel?
Vou avançar aqui uma hipótese. Acredito que Deus não estava de fato se importando com o Faraó, nem com os egípcios. Tenho para mim que todo esse imenso teatro era para os próprios hebreus. Eles haviam ficado por lá, nos conta o autor bíblico, 430 anos após a chegada da família de Yaaqov e o governo de Yosef, seu filho, o que teria tornado os egípcios favoráveis à presença de semitas em suas terras; logo no começo de Shemot o texto diz que entra no poder um governante que não conhecia Yosef, ou seja, não lhes era simpatizante, donde, a ordem do genocídio que inicia a saga sobre a qual estamos trabalhando.
Isto significa que estamos falando de hebreus que estão a 430 anos após a chegada da família do terceiro patriarca (a ordem é Avraham, Yitzchaq e Yaaqov), aqueles que recebiam ordens diretas de Deus, que mantinham com ele, de alguma forma, um relacionamento estreito, o qual pode ser atestado pelos 12 filhos e 1 filha de Yaaqov. Entretanto, naturalmente, estimamos também que essa conexão íntimo com YHWH foi desaparecendo — e esta suposição se inicia porque não há textos narrando este período, embora haja, por exemplo, dos também 400 anos entre Yehoshuʿa e a monarquia (Sefer Shoftim | ספר שופטים — Livro de Juízes). Seguindo a lógica do autor bíblico, se houvesse algum relacionamento entre Deus e os israelitas que ficaram no Egito, haveria textos narrando.
Logo, parece que o autor quer estabelecer que esta é uma era não de esquecimento total de YHWH, mas de assimilação à cultura egípcia e perda de importantes costumes da cultura hebraica, como guardar o sábado, circuncidar os meninos, dentre outros.
Assim sendo, entendo que era muito importante eles serem lembrados da força de YHWH, de seus milagres, de seu desejo poderoso, da severidade de sua fúria, da incomparabilidade de seu poder diante dos outros deuses (algo bastante recorrente, tendo em vista que a Bíblia não é monoteísta, ao contrário do que a religião nos faz pensar).
Temos que ter em mente que os hebreus escravizados não pretendiam sair do Egito, apenas reclamaram que a vida era dura. Levá-los para outro lugar é uma agenda de YHWH, não dos humanos e é provavelmente este hiato nos interesses que origina as infindáveis lamúrias posteriores. Os hebreus foram ouvidos, mas Deus exagerou na salvação, eles só queriam trabalhar menos, salários melhores, cerveja mais barata, um sol menos inclemente. Ninguém pediu para sair do Egito. Não estavam reclamando nem sequer “Ó, Eterno, estás tão ausente de nós, estamos com saudade”.
Eu sei que este texto, escrito assim, está parecendo um pouco brincadeira, mas não é. Uso esse tom para nos colocar na situação da forma mais concreta possível. Os hebreus não sentiam falta de YHWH. Não estavam pedindo a volta dos “bons e velhos” costumes antigos (coisa que farão em relação ao Egito quando estiverem no deserto, alguns capítulos mais tarde). E isso é importante para entendermos o contexto deste e dos livros subsequentes.
Como os hebreus não conheciam YHWH de perto, para eles é que foi aquele show de horrores. Mais do que ser acordados de seu sono de Deus, era preciso fazer despertar o seu dna israelita, adormecido pelo tempo e esmagado pela poderosa cultura e riqueza egípcias, além da preguiça de evoluir própria dos humanos.
Deus não está falando para o Faraó e, inclusive, a partir da travessia do mar, repete incessantemente “Eu sou o teu Deus que te tirou da terra do Egito”, como que para que os hebreus não se esqueçam jamais de que vieram não de uma terra magnífica, e sim, de um locus sem Ele, de uma vida sem YHWH e à mercê dos deuses egípcios, que, por sua vez, são por Ele facilmente reduzidos a piolhos, a moscas, a perebas.
Talvez possamos estender a ideia e dizer que também a cultura egípcia é passível dessa redução, justamente por não conter a presença divina, satisfazendo-se, inclusive, com aqueles magos que figuram na narrativa, tentando emular os feitos de Deus sem sucesso (na verdade, o texto afirma que eles não conseguem é desfazer os feitos, o que não deixa de ser interessante).
É por isso, avento eu, que Deus “endurece” o coração do Faraó, em lugar de simplesmente dar uma ordem, “Solta meu povo!”; e o número e a dureza das pragas significa não apenas Deus expondo sua força e sua superioridade aos deuses egípcios e ao Faraó, mas também dando uma mostra do que poderá operar no futuro em nome do seu povo, bastando para isso que ele esteja com Ele. Os tempos do deserto serão extremamente duros; Deus sabe disso, nós também sabemos porque já lemos os livros, mas os hebreus, não. Precisam ter em suas mentes muito bem gravada a grandeza dos feitos de YHWH — ainda que por meios traumáticos. É com ela que eles atravessarão o deserto e é com ela que adentrarão a Terra Prometida — ponto fulcral da agenda divina.
E Deus estava certo, porque vejam que, ainda assim, as dúvidas e o nhém-nhém-nhém dos Filhos de Israel são intermináveis, eles são mimados ainda que houvessem sido escravos — um psiquismo muito interessante, na verdade. Sem aquela impressão a ferro das 10 pragas, não poderiam jamais forjar um povo que vivesse, por fim, para adorar YHWH.
*Tem que pensar nessa gíria com a voz do Ed Motta.
**Chama-se Shirat haYam (שירת הים | Canção do Mar) e está na minha parashá (por ocasião do bat/bar mitzvá de alguém, é lida a porção da Torá relativa à sua data de nascimento). Este trecho é um poema muito antigo e tem uma cantilena própria.
Flavia Virginia