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Calendários
Curiosamente, na volta de minha viagem conversei com um angolano ex-morador do Brasil que se espantava em não ver carros importados de alto luxo, nas cidades brasileiras; surpreendia-se, na verdade, em ver uma classe média tão mediana em posses, saberes e aspirações. Assombrava-se, por fim, por o brasileiro não cobiçar ardentemente a riqueza – não por não querê-la, mas por jamais poder alcançá-la. Tal observação nos traz de volta a um tema nosso: Brasil e Angola, análogos no abismo social entre ricos e pobres, díspares no acesso à opulência.
No Brasil, reparei bem agora, quase tudo é feito para a classe média. O layout dos bancos, os shopping centers, a relação entre custo/número de minutos dos cartões de recarga dos telefones celulares, as variadíssimas opções de pagamento de quaisquer produtos, as cores da moda e a moda em si, para não mencionar a televisão.
Os problemas mais difundidos pelos mídia também são classe-média, e são enfatizados de acordo com os meses do ano: Janeiro, matrículas e materiais escolares, além do pagamento de taxas como imposto predial, imposto do carro, taxa do lixo; Fevereiro, o carnaval em diversas regiões do país; Março, o início real do ano, com os índices econômicos comparados aos do ano passado; Abril, a Páscoa, aquela festa em que se fabricam e se compram ovos de chocolate, e também a entrega do imposto de renda; Maio, mês das Mães, o assunto é a compra dos presentes e o almoço nos restaurantes; Junho, mês dos Namorados, com preocupações iguais às do mês anterior; Julho, férias de inverno das crianças, mesmo onde só há uma chuvinha; Agosto, mês dos Pais, semelhante ao das Mães; Setembro, mês da Independência do Brasil, francamente menos importante que todos os outros; Outubro, mês das Crianças e dos Professores, significando menos aulas nas escolas, e para os católicos religiosos, mês da santa padroeira do país, Nossa Senhora de Aparecida, atraindo multidões à sua basílica; Novembro, comemoração da República, seria fraco como Setembro, mas como vem antes do apoteótico Dezembro, é o verdadeiro mês da “anunciação”; Dezembro, nem é preciso dizer, Natal e Ano-Novo: presentes, 13o. salário que vai embora antes de chegar, festa de fim-de-ano de arromba, roupa nova, destino paradisíaco, quem sabe férias, para acordar em Janeiro com imensa dor-de-cabeça sem saber como fazer para enfrentar o novo ano que já se inicia com dívidas do anterior...
O calendário dos muito ricos, só posso imaginar que, embora enfrente as mesmas comemorações, são acrescidos de outras coisas bem mais palatáveis, como as inaugurações de museus, teatros, restaurantes, festas beneficentes, fundações beneméritas, ou outras mais próprias, como criações de bancos, fusões empresariais megamilionárias, talvez estréias de rodovias gigantescas; todos esses são eventos em que se poderá contar com a presença dos mais abastados, pelo menos assim imaginamos nós, os da classe média, não sabemos bem, não somos convidados.
Os pobres não têm nada disso, claro, seu calendário é bem outro. Quer dizer, têm as contas todas acima e as festividades mais comuns e corriqueiras, mas com o triplo de chatices: Janeiro, por exemplo, é o mês de se passar dias em intermináveis filas para tentar uma vaga na escola pública para o filho, e sair delas muitas vezes fracassado, e desesperar-se por não ver o filho matriculado este ano. Fevereiro será mais democrático, pois carnaval há mesmo em qualquer lugar, e também à borla. Março não representa nada, os pobres empregados já estavam trabalhando e os desempregados permanecerão em seu lastimável estado, apenas para constar nas sondagens do ano que vem. Abril, imposto de renda para todos, ovos de chocolate nem por isso. Maio, mãe é mãe, não se discute. Junho, talvez um beijo mais carinhoso no namorado. Julho, férias, bem, 2 dias de viagem para ir 2 dias para voltar num autocarro para o Nordeste não compensa por menos de 45 dias; melhor ficar em casa, gasta-se menos. Agosto, pai é pai, mas homem não fica sentido se não ganhar presente. Setembro são só as contas normais, é hora de reparar quanto a inflação comeu do valor real do real. Outubro, mês das crianças, espera um pouquinho que o Natal está chegando. Novembro é tentar ir juntando para os gastos de Dezembro. Dezembro, vamos ver se conseguimos pelo menos assar um franguinho; quem sabe até dá para fazer um churrasco com o 13o? Vamos já comprar uma grade de cerveja para o Ano-Novo.
E tem o calendário dos miseráveis: Primavera e Verão: discussão com a assistente social sobre ficar ou não no abrigo, aceitação do sopão, dormir na rua. Outono: novas conversas com a assistente social, fotos para a campanha do agasalho, sopão, dormir na rua. Inverno: recolha obrigatória dos mendigos para o abrigo, sopão, fuga para a rua, morte pelo frio.
Neste ano de 2006, compulsório para todos: Mundial em Junho, eleições em Outubro. Deus nos abençôe.
Flavia Virginia