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Fermentações

Autor(a)

Flavia Virginia

Data

June 17, 2006

Língua

Português (PT)

Categoria

Jornal

Publicação

Jornal de Angola

בס"ד

Fermentações


“Eu bebo, sim, e estou vivendo/tem gente que não bebe e está morrendo...” [Velhas Virgens] 


 Mais importante do que perceber de bebidas é distinguir suas respectivas carraspanas. Diz a lenda que ali na finada Escola Oito (xinguilemos, a morte de uma escola é um mais que justo motivo para se xinguilar) havia uma professora, Ermelinda Weltanshauung, que passou a ser assim conhecida após se amigar com um alemão de mesmo apelido, mas cujo nome de família era Ermelinda Disuyujika, sendo entretanto chamada pelos alunos de P’sora Linda. Enfim, P’sora Linda aparecia todas as segundas-feiras com o olho esquerdo fechado, curioso, olho esse que ia se recuperando ao longo da semana e, mais curioso, na sexta-feira atingia o auge de sua abertura. 


P’sora Linda pensou primeiro em proibir perguntas, mas, ao dar-se conta da inutilidade da medida, tentou escrever um parágrafo explicativo, o qual entregaria a todos os alunos e colegas. Foi dissuadida, no entanto, pois esse trabalho teria que ser feito no fim-de-semana, e isto estava fora de questão, pois no fim-de-semana tinha seus sacrossantos deveres. De qualquer forma, aos poucos todos ficaram sabendo que P’sora Linda sofria de um tipo raro de enxaqueca, que se dá por causa de uma compressão congénita do nervo ótico, causando o involuntário fechamento da pálpebra, doença incurável e hereditária, inclusive. Apesar de um pouco incómodo, não causava maiores transtornos, a não ser quando havia exames às segundas-feiras, uma vez que com um olho só não controlava bem os miúdos a tratarem de copiar uns dos outros; mas isso foi sanado ao passar os exames para as quartas-feiras. 


O pai da P’sora Linda, um eminente importador de grande estima para o país, também sofria de problema semelhante, com o agravante de alternar entre os dois olhos, ó doença cruel, e de não se recuperar totalmente na sexta-feira. Acrescente-se a isso o fato de ser um homem de constituição natural magra, mas de partes isoladas dilatadas, igualmente, ao que parece, fruto de uma degeneração qualquer que torna as bolsas sob os olhos, as bochechas, o papo e a barriga inchados. Mas nada disso o impedia de freqüentemente discorrer sobre a importância de se valorizar o produto nacional onde quer que fosse, homem de sentimentos patrióticos invejáveis. 



Eis que a escola organizou, certa ocasião, uma feira de estudos inspirada justamente, vejam vocês, numa das prelecções de domingo do não-convidado-para-discursar-mas-discursando-mesmo-assim pai da P’sora Linda, que se havia dado numa mui alegre funjada na casa de uma tia de um dos directores da escola. A ideia foi aprovada com louvor, e o mote principal não poderia ser outro: o produto nacional. 


Toda a escola foi dividida em grupos e cada qual tinha o direito de eleger o seu objecto. Muitos optaram pelo petróleo e outros tantos pelos diamantes, pelo que os professores tiveram que se concertar no sentido de abordar o mesmo tema sob aspectos distintos. Alguns escolheram a música e a dança, e dois, a arte das máscaras. Um grupo misto entre o oitavo e o nono ano seleccionou a gastronomia, mas a poucos dias do prazo acabou por preferir ficar só com a bebida, que dava menos trabalho e, ainda assim, já era muito. 


A feira, ocorrida num sábado pela manhã, foi um sucesso. Os grupos tinham-se empenhado bastante e os professores foram de grande ajuda. Os pais e demais visitantes estavam empolgados com o resultado, pujante, colorido. Houve uma grande comoção patriótica, pois o produto nacional estava ali valorizado por essa promissora geração de jovens que cresciam conhecendo a importância do nosso país. 


Um grupo em especial foi, aos poucos, atraindo a atenção dos visitantes, talvez pela estética com que organizou sua bancada. Havia umas estantes de madeira, todas pintadas de cor creme e assentadas sobre tijolos. Sobre elas repousavam várias garrafas transparentes contendo bebidas de cores diversas, tendo à sua frente uma plaqueta indicando o nome de cada uma. À direita, um cavalete com grandes folhas de papel explicava o processo de confecção de algumas daquelas bebidas. No canto esquerdo, havia uma destilaria tradicional em ponto pequeno para simular a fabricação. Os miúdos estavam divididos entre os que diferenciavam os conteúdos das garrafas, os que explicavam detalhes históricos segundo os desenhos e os que serviam as ponteiras da míni-destilaria para provas no momento. 


Sua experiência causou tanto interesse que nunca puderam ir visitar outras bancadas; ao contrário, os meninos de toda a  escola não queriam sair dali, nem os pais, nem os professores.

 

Na segunda-feira não houve aulas, pois era necessário limpar toda a escola e só o domingo não era suficiente. Mas na terça as aulas foram retomadas, com todos ansiosos por discutir a feira. Dois professores e seis estudantes apareceram com um dos olhos fechados, afectados pelo que parecia ser a mesma enxaqueca da P’sora Linda. Diante daquele estarrecedor fenómeno, alunos mais maldosos concluíram que alguma das bebidas deveria ser a causadora daquele mal. Apesar de impreciso, o rastreamento indicou que na base do estrago ocular estava o caporroto,– aguardente fermentada em tambores de gasolina, cujas destilarias são inclusivamente proibidas pela polícia – e que, tendo vindo já pronto, era retirado na hora da destilaria-maqueta. 


P’sora Linda, que não apareceu por toda aquela semana, pediu a demissão.


Flavia Virginia

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