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Hoje Só Tenho Perguntas
Bem, ainda estou de viagem e, depois de Portugal, vem o Brasil, aquela terra fascinante em aconteceres fantasmagóricos e coisas inexplicáveis que convivem com os eventos mundanos como se ao mundo pertencessem, como é o caso do homem que desmorreu, ou das CPIs que terminam em nada, ou das reeleições históricas enquanto confusas. A velocidade com que as coisas ocorrem por aqui é qualquer coisa de estonteante. Vale a pena passar uma temporada no Brasil somente para conhecer o incompreensível de perto, e tentar ainda aprender com o povo brasileiro como é que se faz para manter uma certa coesão mental apesar das loucuras que são ora protagonizadas, ora observadas por cada cidadão.
Estive esses dias a passear calmamente pelas ruas de São Paulo. A cidade impressiona por qualquer índice que se pretender: poluição, riqueza, trânsito, restaurantes, mendigaria, cabeleireiros e barbearias, centros comerciais, bons preços, preços exorbitantes, construções, feiura, beleza, enfim, tudo aqui é muito. Mas, contava eu, estava a passear de carro por uma das avenidas mais chiques da cidade, de nome Brasil. É uma avenida histórica, pois possuíam ali suas casas os barões do café, e ainda hoje mantêm-se muitas com sua antiga arquitectura, casarões belos, abertos à rua, a diferir das vivendas nas vias adjacentes, estas com altos muros a esconder a opulência de quem ali, por ela mesma, aprisiona-se. Já não sendo o café há muito motivo de grandes fortunas, as casas da dita avenida transformaram-se todas em espaços comerciais, alugadas a valores impensáveis, numa manutenção contemporânea do estatuto antigo. Embora politicamente, se não incorrecto, pelo menos incómodo, é um belo espectáculo por tornar-se uma espécie de oásis na cidade em alturas que é São Paulo.
Pois bem, toda essa longa introdução para contar-lhes que, em meu passeio de carro, ao parar num sinal vi um homem, morador de rua (como agora são chamados os que outrora eram apenas mendigos), deitado em sua casa. A avenida, que possui três faixas numa direcção e mais três em outra, é dividida por um largo canteiro. A casa desse homem situava-se no canteiro. Digo que era sua casa assim tão claramente porque ele encontrava-se ali a repousar não na relva, como costuma acontecer, mas sobre umas almofadas coloridas, conforme fosse um, digamos assim, gajo muita descontraído.
À sua frente estavam outros objectos que tinham o ar de serem típicos de uma casa qualquer, inclusive uns panos pendurados sobre as plantas e sobre alguns murinhos que constituem o canteiro.
O homem estava deliciosamente sentado em seu sofá, com os braços cruzados por trás da cabeça como quem estivesse a ver televisão, que era só o que faltava àquele cenário. Já a posição dele no meio – literalmente – da Avenida Brasil era o suficiente para que a imagem fosse inesquecível. Mas é claro que nada parou por aí. Chegaram três pessoas para visitá-lo. Duas do sexo feminino e outra de sexo incompreensível. Duas sentaram-se ao murinho que servia, além de estante, como cadeirão para as visitas, pude logo reparar. A terceira parecia ser sua namorada, pois sentou-se SOBRE ele numa posição tão informal e aconchegada que deu a entender que por ali ficaria horas. Puseram-se todos a conversar animadamente, alheios por inteiro a tudo o que havia à sua volta. Para eles, estavam entre quatro paredes; tocaram a campainha e o homem disse “entre”, pronto, entraram, sentaram, passariam horas agradáveis sem importar-se ao menos com o barulho da vizinhança na hora do rush paulista.
Enquanto essa cena inolvidável desenrolava-se, eu ia no carro a ouvir uma canção do meu próprio cd cuja letra diz “te amar é colorir o olhar/ver o vermelho no azul”. Apercebi-me na carne da existência simultânea de várias dimensões, vários planos no mesmo espaço e tempo. Também para aquele casal de namorados aquela letra fará sentido, e, a contar pela alegria do encontro, o fará no mesmo sítio interno em que para mim, dentro da minha realidade de quatro paredes não-imaginárias, faz.
Ao mesmo tempo, perguntei-me e ainda pergunto-me se, ou como os sentimentos daquele homem igualam-se aos meus, como é possível, ele mora na rua e faz de conta que não, ou nem faz, não sei. Mas naquele momento em que as dimensões sobrepuseram-se, pareceu-me que sim, ele a ama e é muito mais real que as palavras de minha canção. E mais: é ele, um morador de rua, quem me escolhe para pontuar seu amor, resplandecente e legítimo.
Já nunca mais poderei cantar minhas próprias histórias sem lembrar-me que o encontro de todos esses planos é possível e que é preciso estar atenta, pois eles aparecem a cada tanto. Se nos permitirmos permear-nos deles seja como artistas seja como cidadãos, a arte será melhor e as condições sociais, também.
E esta foi a grande lição deste dia fantástico.
Mas pelo menos terminei aquela frase com um acerto: “Te amar é o mesmo que amar Deus/e a Música/e o Brasil.”
Flavia Virginia