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O Homem que Desmorreu
No Brasil, nação onde acontecem as coisas mais inusitadas, até mesmo surreais, houve há poucos dias um homem que caiu de sua bicicleta e, ao chegar ao hospital, teve diagnosticado um coágulo no cérebro e foi dado como morto. Já o levavam a caminho da morgue quando tossiu, momento dramático que evidenciou que de falecido o homem não tinha nada, embora seus irmãos já lhe estivessem a preparar o velório.
Foi uma comoção de proporções provinciais e o facto só não mereceu destaque mais prolongado na comunicação social brasileira porque eventos insólitos como esse ocorrem aos borbotões no país, não é possível ater-se por muitos dias num só.
Mas a família e amigos ficaram muito felizes por terem tido de volta aquele a quem já consideravam ido, até porque, acrescento eu, como depois de mortos todos viram santos, as ofensas que lhe haviam retirado por ocasião do suposto luto puderam, graças àquela inesperada ressurreição, voltar a estar coladas à sua lembrança, o que representou um alívio para muitos.
E, por último, mas nem por isso menos importante, o hospital considerou-se responsável pelo, digamos assim, transtorno causado, e afirmou categoricamente que iria apurar o caso. Apesar disso, o médico responsável pela apressada conclusão – aliás, apressadíssima – não quis aparecer para prestar maiores esclarecimentos.
Claro.
Sim, estimado leitor, eu sei que o seu primeiro argumento é: como é um possível um médico enganar-se a esse ponto – confundindo vida com morte, quando nos parecem tão diferentes, inclusivamente opostas? O coágulo terá, segundo entendi, interrompido momentaneamente as funções vitais do homem. Pode ser que tenha havido alguma impaciência do corpo médico, talvez um jogo de futebol importante tenha-se imposto e os exames tornados mais rápidos e superficiais do que o costume. Os informes dos mídia não evidenciaram esses detalhes, mas pode ter acontecido. Quando o homem tossiu, todos puderam perceber que afinal ele não estava assim tão morto quanto costumam estar os finados; o homem voltou ao seu normal, foi operado e passa bem.
Ainda por cima, passa bem!
É claro que a notícia foi dada de maneira a que o ouvinte, apesar de perplexo, pudesse compreender o fenómeno sob a óptica da lógica. Mas eu, a título literário, prefiro não assimilá-lo assim. Para mim, o homem simplesmente desmorreu. Foi até à portaria do outro mundo, olhou bem, não gostou do que viu e voltou. Desafiou os guardiães do Portão do Além, desobedeceu as ordens da Comissão Organizadora para a Vida no Planeta Terra, conhecida no cosmos como COVIPLAT, driblou os anjos-guias mesmo estando em desvantagem no número de asas, enfim, o homem não quis ficar, bateu pé e não ficou. Deve ter roubado os formulários, certamente os trouxe consigo mas não revela onde os guardou; esse homem, aliás, não revela nada, só transmitiu que preferia mil vezes estar vivo, o que corrobora minha teoria. Levou um susto, disse para disfarçar, ao saber que esteve morto por uns instantes.
Esse homem é pintor, não artista plástico, mas pintor de paredes. Será que o valor de seu trabalho subiu muito? Ora essa, esteve onde os homens vivos não costumam estar. Se eu fosse ele, a partir de agora enfiava a faca, como se diz no Brasil; cobraria uma fortuna.
—Pois não, que cor vai querer, azul-céu? Pode deixar que eu preparo, mas sai um pouco mais caro que o azul normal...
Ou então, se ele quiser poderá fundar uma nova religião – no Brasil tudo é possível, especialmente fundar uma nova religião. Vai ficar bem mais rico, mas também dá muito mais trabalho.
Seja como for, é bom lembrar que ninguém sabe exactamente o que ele fez para escapar a um destino que já estava definido. Especula-se, porém, uma dentre duas opções: suborno ou cunha. Em qualquer dos casos, não se pode brincar com ele, não convém. De minha parte, eu aposto que aparecerá nas próximas eleições para deputado estadual – nem será preciso passar por vereador primeiro, pois Minas Gerais tem muito o que orgulhar-se desse filho que desmorreu. O partido será o PHD – Partido dos Homens de Deus.
Seu mote: Ele me ouve.
Só nos resta mesmo acreditar.
Flavia Virginia