[Leia aqui a segunda parte]
E o que é a religião?
A religião é a área de atuação humana que criamos para lidar com o Transcendente. Com o que não entendemos. Com aquilo que, conforme se diz em algumas tradições, nos criou à sua imagem e semelhança. Veja-se que, assim como não somos mais inteligentes que os antigos, apenas tendo um outro acúmulo de saberes, dizemos “Transcendente” sem que o termo se oponha à ideia de Imanente, porque isso não apenas não importa, como não dá conta da imagem do que sentimos que é: a noção de dentro/fora, antes/depois não é compatível com a de “Criador”. Essas categorias servem ao nosso propósito de agarrar o inagarrável para tentar imaginar aquilo que não podemos entender de fato. Mas o Criador – qualquer criador – não está dentro ou fora de lugar nenhum, pois ele é o próprio lugar (haMaqom, se diz em hebraico, querendo dizer que Deus é O Lugar); nós é que, habituados ao espaço-temporalidade, atribuímos categorias a um “ser” que forçosamente não pode possuí-las, mesmo quando ele é pensado pelo nosso incompletíssimo pensamento, porque os atributos se originam de delimitações que não faria sentido este ser possuir, por definição. Atribuímos porque, sem categorias, não somos capazes de dar forma a nosso pensamento. Esse processo, infelizmente, não torna nosso entendimento melhor, apenas lhe permite arranhar o possível. Algo como “podemos falar sobre um criador, ainda que não possamos entendê-lo”. E isso, mesmo assim, inconcluso, volátil, nos basta. Em outras palavras, a religião é, antes de tudo, o filosofar de uma filosofia prática, que leva junto corpo, coração, mente, alma; mas este filosofar tem seu jeito próprio e não agrada a todos.
E isso não é tudo. Para muitas culturas, o Criador não apenas não tem tempo, nem espaço, nem dentro, nem fora, nem antes, nem depois, mas, acima disso, fez a criatura à sua imagem e semelhança. Então, ao contrário do que as críticas ao sistema religioso faz, não é que nós antropomorfizamos os deuses; se nós somos ciumentos, é porque eles o são, e da mesma forma se somos bondosos. Tudo o que somos, eles o são; são eles o modelo e nós, a cópia; entretanto, a partir de um determinado momento na história, passamos a querer o que nós, por escasso, consideramos o ouro fino: a perfeição. E a perfeição é o que flagrantemente não somos. Depois de inventar a perfeição, portanto, inventamos todas as distâncias, todos os não-tempos, todos os opostos, todos os impossíveis. E somente neste aí é que nos afastamos de Deus.
Por sorte, o sistema religioso nos permite trazê-lo sempre de volta. É verdade que, como não dá para desver, já não o trazemos sem mácula – mas não é Ele o maculado, e, sim, nós: somos raivosos porque ele o é, mas exigimos que isso não seja verdade, que Ele não o seja e, com o passar do tempo, vamos nos chocando quando Ele se encoleriza conosco. Isso, nós, não os antigos. Os antigos entendiam essa dinâmica perfeitamente bem, tanto que escreveram maravilhas sobre esse Deus de quem eles, sim, se sabiam a cópia. Para nós, aperfeiçoadores dos sistemas herdados, no entanto, esse passo ficou inalcançável. Então vamos tentando novos equilíbrios.
Ainda assim, a principal questão do sistema religioso e das religiões que o seguem é outra: somente nessa área é que podemos falar de Deus. Não há uma segunda. Melhor posto, somente nessa área podemos falar de Deus como quem O sente. É neste ambiente que as questões dos opostos, se Imanente, se Transcendente, se seja lá o que for perde o sentido por completo, se apequenam. O Deus da religião é grande, gigante, mas, diferente do Deus da física, do Deus imaginado, Ele é um conosco, topa todas as paradas, é um parça, é infinito, é incompreensível, é barulhento, às vezes some, às vezes irrita. Essas coisas acontecem na religião real, na religião vivida e só às vezes nos tratados filosóficos, mesmo quando estes discorrem sobre as comidas das oferendas. O espaço do barulho de Deus é a religião. E não vai haver uma raça humana que queira prescindir desse barulho. Não haverá nem sequer uma que queira prescindir da dúvida sobre Sua existência – embora, como já dito, essa pergunta pertença ao sistema filosófico de fazer perguntas, mas não à existência concreta do Deus que existe por meio de nós, como se nós fôssemos o exercício que Ele elegeu para experimentar a Si próprio ao mergulhar numa de suas infinitas células.
E que nós, apesar dessa infinitesimalidade, possamos ter um nome e sentir-nos também ser… isso é divino.
E é da religião, e só dela, tudo isso.
Comments