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Comerei da Alface a Verde Pétala
Vinícius de Moraes tem um soneto que começa assim: “Não comerei da alface a verde pétala/nem da cenoura as hóstias desbotadas/deixarei as pastagens às manadas/e a quem mais aprouver fazer dieta."
Pois do que mais sinto falta da minha terra natal em Luanda é justamente os legumes e verduras, por mais engraçado que pareça. Sempre que volto ao Brasil procuro logo me empanturrar de rúcula. Quando acho que já comi o suficiente, lembro-me que só vou voltar a vê-la daqui a muito tempo, e aí começo a pensar em pedi-la já desde o pequeno-almoço. Do género “recarregar as baterias”, sabe?
Outro campeão de bilheteiras é o manjericão, que eu até plantei no meu jardim aqui, mas que, graças ao meu jardineiro – qualquer dia tenho que lhes falar dele, não me deixem esquecer, ele é mesmo imperdível – não estão mais conseguindo florescer, de maneiras que temos que comprar a preços exorbitantes em alguns supermercados estrangeirizantes. Mas compramos, porque ficar sem manjericão é que não podemos.
Também as frutas fazem muita falta: na primeira vez em que vim a Luanda, pedia a um meu conhecido dono de restaurante que me oferecesse um sumo de alguma fruta diferente, ao que ele dizia “não há nada diferente aqui” e eu contestava “não é possível” e ele “maracujá” e eu com vontade de responder “a patente do maracujá é brasileira, meu caro, quero algo que não conheça” e só depois de muito tempo é que vim a saber que existe, sim, uma fruta exclusiva, angolana, muito saborosa e de difícil acesso e por isso mesmo cara: o maboque.
Ainda não fomos apresentados. Se for bom como dizem, tenho certeza de que vamos nos adorar. Como será seu gosto? Eu já o vi uma vez – aliás, foi um episódio memorável: íamos num passeio à Barra do Kwanza e havia na beira da estrada uma família que o vendia. Ao saber que aquelas frutas eram o tão decantado maboque, entusiasmei-me e paramos o carro prontos para nos deliciarmos. Encarregadas da negociação estavam crianças, a quem perguntamos sobre o preço da fruta. Sua resposta, no entanto, revelava no mínimo um péssimo instinto comercial, pois nos diziam entre risos: “esse maboque não presta, está mau” e, por causa do ar zombeteiro, não sabíamos se falavam ou não a verdade. Após inúmeras tentativas de entendimento tiveram que chamar uma mais velha. Esta, ao se encaminhar em nossa direcção estava entretanto tão bêbada que caiu sentada no chão, para deleite dos miúdos. O clima já conturbado de comércio terminou por se desfazer, e tivemos que desistir do mágico encontro que teria acontecido entre mim e maboque, maboque e eu, com imensa frustração gastronómica mas, confesso, divertidíssimos com todo o acontecimento.
Mas minha vida aqui não tem sido só decepção do ponto de vista legu-verdurífero; uma das maiores surpresas foi a batata-doce, que eu não comia no Brasil, embora seja um alimento muito típico do Nordeste, região de onde venho. A daqui, entretanto, revelou-se infinitamente mais rica, saborosa, e, se junto de um cacusso e de um bom feijão ao óleo de palma, é capaz de levar às lágrimas até o coração mais enrijecido pelas brutalidades da existência. Sempre que como batata-doce, peço perdão a Deus e a mim mesma pelos anos em que me recusei a comê-la, no Brasil. E imagino o que seria de meus conterrâneos se a descobrissem: haveria um êxodo em massa, directamente do Nordeste brasileiro para cá, o que seria bom, pois encheria um pouco a terra, imediatamente desenvolvendo a agricultura. O único cuidado seria o de não permitir a monocultura, que erode o solo, além de tornar qualquer iguaria enjoativa.
Contudo, como em todo o universo há uma hierarquia, também no mundo das folhas comestíveis é assim, e a rainha soberana é a bertalha. Sei que muitos de vocês estarão lendo esse nome pela primeira vez, e imagino até que os mais curiosos o anotarão para, em sua próxima viagem ao Brasil, requererem o acepipe no primeiro restaurante; todavia, não aconselho tal prática, pois quase ninguém conhece essa verdura e só a encontramos às vezes e em alguns mercados, sendo que até mesmo o seu nome varia de estado para estado.
Mas enfim, a bertalha é qualquer coisa de espectacular. Começaria por dizer que, além do sabor ser maravilhoso, ela dispõe de um recurso por mim nunca dantes navegado no mundo das comidas: o cheiro do gosto. Tentarei explicar-me, sem promessas de sucesso: quando vem o prato quentinho, aquele refogadinho simples, normal com que se faz um espinafre ou uma couve, a bertalha exala um cheiro muito bom. Posta na boca, o gosto nos remete a um cheiro diferente, que por sua vez transforma o gosto em algo sublime, muito acima das capacidades normais de um vegetal. A mim, me parece que estou fazendo uma viagem directo à Maceió, minha terra natal. Será uma planta alucinogénica?, perguntar-se-ão vocês. Ora, é sabido que a língua humana é pobre em decifrares, distinguindo apenas as temperaturas e o quadrinómio doce-salgado-amargo-azedo. Todo o restante é trabalho do olfacto, exceptuando-se a parte relacionada com o tamanho da fome, que pode transformar qualquer porcaria em manjar dos deuses. Mas é o olfacto quem traz noções como “bom”, “delicado”, “exótico” ou “sublime”. O que eu digo é que a bertalha tem um cheiro fora e outro diferente, mais intenso, mais mágico, religioso, eu diria, dentro da boca, compreendem?
Não, não compreendem. É preciso passar pela experiência para saber. E esse nirvana gastronómico não é para todos, claro. Por exemplo, aqueles dentre vocês que não crêem no que eu digo, provavelmente nunca terão esse conhecimento. Pois, como com outras experiências espirituais, não somos nós que vamos ao encontro da bertalha; é ela quem vem a nós. A nós, os merecedores.
Flavia Virginia