top of page
List

Lili, a Saga

Autor(a)

Flavia Virginia

Data

December 2, 2006

Língua

Português (PT)

Categoria

Jornal

Publicação

Jornal de Angola

בס"ד

Lili, a Saga


Tenho aqui em São Paulo uma amiga que possui uma cadela, uma rafeira carinhosamente chamada Lili. Como é imaculadamente preta, ela também atende, com aquela alegria quase patética típica dos cães, à alcunha de Nêga. Aliás, não era sobre isso que eu ia falar-lhes hoje, mas não posso perder a oportunidade de questioná-los sobre se acreditam que os cães sabem mesmo seus nomes ou se apenas atendem à entoação de apelo emitida pelos humanos. 


Bom, minha opinião não conta porque eu não sou lá muito afeita aos canídeos. Afinal, a meu ver ou bem se late ou bem se baba, os dois juntos é inadmissível. Melhor ter uma árvore dentro de casa do que um cão. Até porque, ao contrário do que se prega habitualmente, nada pode ser mais irritante do que chegarmos em casa aborrecidos com algo e encontrarmos nosso cachorro sorridente, a abanar o rabinho e a babar como se nada tivesse acontecido. O cão é, antes do mais, um insolidário. 


Naturalmente, são poucos os que compartilham comigo dessa convicção, com excepção feita a alguns povos do oriente, que entretanto já exacerbam a questão ao transformar cães em iguarias gastronômicas – nem tanto ao mar, nem tanto à terra, diria eu. Enfim, minha amiga tem uma cadela chamada Lili, deixemos de divagações que a coluna não é assim tão longa, nem tampouco a paciência do leitor neste domingo. Pois eis que a Lili passeava dominicalmente num sábado com seu dono e seu doninho na rua, como de hábito, quando um carro atropelou-a. O dono ouviu apenas o terrível (e temível) som seco (e cruel) de uma bordoada impiedosa (e aterradora) seguido de um ganido agudo (e sofrido) de sua amada (e querida) cachorrinha. Ao término do qual ela saiu a correr e desapareceu, provavelmente assustada com a atrocidade dos humanos que disfarçam-se em veículos automotores de passeio. 


O dono, movido pelos sentimentos de susto, medo, piedade, apreensão, cólera e compaixão, não necessariamente nesta ordem, buscou seu próprio veículo automotor de passeio e, assim disfarçado, foi em busca da dita Lili. 


Em vão. Aliás, em vãos, em becos, em ruelas, em avenidas, em praças, em parques, em jardins, em toda a vizinhança e nas vizinhanças das vizinhanças, por um, dois, três dias, uma semana inteira de mobilização familiar e amiga, sem resultado. O pequenino da família, com um ano e 9 meses, dizia pitorescamente a quem se aproximasse: Lili sumiu. 


Foi encontrada duas semanas depois, em bairro próximo, porém longínquo para quem nunca tinha andado sozinha, ao lado de um bar (comprovando, inclusive, tendências nunca dantes suspeitadas), aparentemente bem de saúde. Como possui inscrição no governo provincial, os donos foram localizados e lá vai ele de novo, a correr ao encontro de sua alma-gêmea canina, quando, mais uma vez assustada com a proximidade forçada pela falta de psicologia de alguns entretanto bem intencionados humanos, Lili desandou a correr, perdendo-se novamente nesta cidade, ela sim, mundo-cão. 


Como será, pergunto-me, que o dono terá dado à dona tão espantosa notícia? Encontrei, mas perdi? O facto é que Lili tinha muito mais a aprender e foi encontrada algumas outras vezes ainda, a vagar, coincidentemente ou não, jamais saberemos, pelas casas de pessoas amigas, cada vez mais próxima de seu próprio lar, quando, ao fim de três semanas, seu dono  avistou-a, abriu-lhe a porta do carro e ela entrou, como se nada, como se tudo. 


Passa bem, tem apenas uma das patas um pouco ferida, embora psicologicamente deixe a desejar, mas, convenhamos, ter voltado à casa após três semanas perdida em São Paulo já é muito bom, não foi assaltada, não morreu à fome, não foi agredida na rua, não estava nem bêbada nem drogada (apesar de não podermos nos pronunciar sobre prostituição), enfim, Lili é uma vencedora e também sua família humana. Agora é a reintegração aos hábitos caseiros, à dieta alimentar balanceada, às brincadeiras familiares, aos horários de soninho nos sofás que deveriam ser destinado às pessoas, ou seja, aquele vidão que só se proporciona mesmo aos cães, até hoje não sei por quê. Inclusive eu mesma, euzinha, aconselhei minha amiga a levá-la ao médico-homeopata, vejam só, traímos facilmente nossas próprias convicções motivadas por uma estória lacrimejante. (Sim, no Brasil há homeopatas especializados em animais domésticos. Vou dar um tempo aqui nessa frase para vocês se recomporem.) 


(Já posso continuar?) 


(Então volto semana que vem.)


Flavia Virginia

bottom of page